Aparecida: uma história sobre a vulnerabilidade da mulher brasileira à morte materna

20/01/2023

A morte materna – morte de uma mulher durante a gestação, parto, ou até 42 dias após o parto – é um evento raro, mas de grande impacto na sociedade. No Brasil, a Razão de Mortalidade Materna (RMM), que mede o número de óbitos maternos para cada 100 mil nascidos vivos, vinha apresentando tendência de queda, mas com valor ainda muito acima das metas dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2015) e dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (2030).

Em 2020/2021, em decorrência da pandemia de COVID-19, observou-se aumento da RMM no país, alcançando o valor de 117 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos em 2021, o dobro do valor observado antes da pandemia.
A grande maioria das mortes maternas acontece por causas evitáveis e sua ocorrência representa uma violação dos direitos humanos.

A história de Aparecida, que você lerá a seguir, não é uma história real. Mas retrata as condições de vida e saúde de muitas brasileiras e sua vulnerabilidade à morte materna.

Acesse o painel com os indicadores aqui e identifique as situações de maior vulnerabilidade em seu município ou estado.

Entenda o modelo teórico de acompanhamento dos indicadores mencionados ao longo da história.

A história de Aparecida

Esta é Aparecida.

Uma mulher preta, que mora num município pequeno, localizado no interior de um estado brasileiro. Ela frequentou a escola por pouco tempo, até o 3o ano do ensino fundamental, pois precisava ajudar no sustento da família.

Ela conheceu seu primeiro namorado quando tinha 15 anos. Iniciou a vida sexual sem proteção e logo em seguida engravidou.

Aparecida sempre utilizou os serviços públicos de saúde, mas no local onde ela mora não existe equipe de saúde da família. Ela não sabia como evitar uma gestação e não tinha acesso a métodos de planejamento reprodutivo.

A Razão da Mortalidade Materna é um indicador que expressa o nível de saúde e a posição da mulher na sociedade. Quanto pior a condição social e de acesso a serviços, maior o risco de morte materna.

No Brasil, a mortalidade materna é duas vezes maior em mulheres pretas e indígenas do que em mulheres brancas. Mulheres de menor escolaridade e nos extremos etários também apresentam mortalidade materna maior.

As condições socioeconômicas e de acesso a serviços de saúde interferem em todos os eventos posteriores relacionados com a saúde reprodutiva. Elas podem ser avaliadas através dos seguintes indicadores disponíveis nos sistemas de informação brasileiros:

  1. Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM)
  2. Proporção de nascidos vivos segundo idade materna
  3. Proporção de nascidos vivos segundo escolaridade materna
  4. Proporção de nascidos vivos segundo cor da pele materna
  5. Proporção de mulheres em idade fértil dependentes exclusivamente de serviços do Sistema Único de Saúde
  6. Cobertura populacional com a Estratégia de Saúde da Família

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O namorado em pouco tempo foi embora e Aparecida tentou, sem sucesso, interromper a gestação.

A família acabou aceitando a situação e o bebê nasceu de parto normal na maternidade municipal. Era um menino chamado João.

Três anos depois do primeiro parto, Aparecida se apaixonou novamente ao conhecer Pedro. Eles ficaram muito felizes quando engravidaram da primeira filha do casal, Júlia. Aparecida tinha 19 anos.

A família não parou por aí: ao longo dos dez anos seguintes vieram Antônio e Carolina.

A proporção de mulheres em idade reprodutiva que têm sua necessidade de planejamento familiar satisfeita por métodos contraceptivos modernos aumentou lentamente nas últimas décadas, passando de 73,6% em 2000 para 76,8% em 2020.

Razões para esse aumento lento incluem: escolha limitada de métodos; acesso limitado a serviços, particularmente entre pessoas jovens, mais pobres e solteiras; medo ou experiência de efeitos colaterais; oposição cultural ou religiosa; má qualidade dos serviços disponíveis; viés de usuários e provedores contra alguns métodos; e barreiras ao acesso aos serviços relacionadas a questão de gênero.

No mundo, entre 2015-2019, cerca de 48% de todas as gestações não foram planejadas. No Brasil, em 2011/2012, esse valor foi de 54%, o que indica dificuldades no acesso a serviços de planejamento reprodutivo.

Em adolescentes, a gravidez antes dos 20 anos afeta o acesso à educação e ao seu pleno desenvolvimento. A gestação precoce está também associada a uma maior probabilidade de ter mais partos e um maior risco de morte materna.

A legislação brasileira só permite a interrupção da gestação em casos muito específicos. Quando uma mulher resolve interromper uma gestação não-planejada, ela acaba recorrendo a métodos inseguros, o que aumenta o risco de uma morte materna.

No Brasil, o aborto é a quarta maior causa de morte materna obstétrica direta.

O acesso ao planejamento reprodutivo e a prevenção de gestações indesejadas ou de alto risco é fundamental para que as mulheres tenham uma gestação segura, mas esses não são dados disponíveis nas bases de informação brasileiras. Por outro lado, pode-se avaliar as necessidades não atendidas de contracepção de forma indireta através de:

  1. Taxa de fecundidade em mulheres com menos de 20 anos de idade
  2. Proporção de grandes multíparas
  3. Razão de aborto inseguro/1000 mulheres em idade fértil
  4. Razão de aborto inseguro por 100 nascidos vivos

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A espera pela terceira filha do casal, Carolina, não foi tão tranquila quanto as outras gestações: Aparecida teve pressão alta e foi submetida a uma cesariana assim que a gestação completou 38 semanas.

O susto com a pressão alta e a difícil recuperação da cesariana fizeram com que o casal decidisse não ter mais filhos.

Após 10 anos sem nenhuma gestação, Aparecida e Pedro relaxaram os cuidados. Por achar que seria muito difícil engravidar aos 39 anos de idade, Aparecida só percebeu que estava grávida novamente no 4o mês de gestação. Era sua quinta gravidez.

Pedro estava desempregado e o emprego de Aparecida era informal, então ela não conseguia faltar para ir às consultas de pré-natal.

A assistência pré-natal é o acompanhamento que toda mulher deve receber ao longo da gestação. O seu início precoce, até o terceiro mês de gestação, é fundamental para a qualidade de assistência e para:

  • a identificação de situações de risco (tais como hipertensão arterial, diabetes, sífilis e outras doenças infecciosas);
  • a adoção de medidas preventivas, como vacinas e suplementos alimentares;
  • o fornecimento de orientações e preparação para o parto e o aleitamento materno, bem como para redução/cessação do fumo, do uso de álcool e de outras drogas.
No Brasil, 1 em 4 gestantes ainda inicia o pré-natal apenas após o terceiro mês de gestação.

O início precoce também permite que a gestante receba o número mínimo de consultas ao longo da gestação. Desde 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda um mínimo de 8 consultas para uma gestante de risco habitual.

Os indicadores abaixo permitem avaliar a assistência pré-natal oferecida às brasileiras:

  1. Cobertura de assistência pré-natal
  2. Proporção de gestantes com início do pré-natal até 12 semanas de gestação
  3. Proporção de gestantes com mais de 7 consultas
  4. Taxa de incidência de sífilis congênita

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Com 6 meses de gestação, Aparecida começou a sentir dor de cabeça e bastante inchaço nas pernas.

Depois de duas semanas sem melhora, buscou ajuda na unidade de Saúde da Família, onde o médico disse para ela repousar. Com filhos pequenos e sendo a única fonte de renda fixa da família, Aparecida não conseguiu seguir essa recomendação e continuou trabalhando.

No começo do 7º mês de gestação, ela se sentiu tão mal no trabalho que voltou mais cedo para casa. Avisou Pedro que precisava descansar, mas logo acordou com muita dor de cabeça e no estômago.

Eles não tinham carro, então precisaram esperar o vizinho voltar do trabalho para levá-los no serviço de emergência mais próximo.

Chegando na UPA, Aparecida não foi atendida, pois ali não cuidavam de grávidas. Eles buscaram ajuda no hospital municipal da cidade vizinha, uma viagem de 100 km.

A admissão da maternidade não tinha classificação de risco e não viram que Aparecida estava com a pressão alta. Depois de duas horas de espera, e sem previsão para atendimento, Aparecida começou a ter convulsões. Foi encaminhada com urgência ao centro cirúrgico para uma cesariana.

Quanto maior a demora para obter uma assistência adequada, maior é o risco de complicações e de morte materna.

A primeira demora é a demora em perceber que há necessidade de cuidados médicos, e relaciona-se às características da mulher, tais como nível de escolaridade e acesso a informações sobre complicações na gravidez e sinais de risco.

A segunda demora é a demora para conseguir atendimento num serviço de saúde e está relacionada às dificuldades de acesso, que podem ser geográficas, econômicas, culturais e organizacionais.

A terceira demora é a demora em receber o atendimento correto dentro do serviço de saúde, e relaciona-se à disponibilidade de recursos humanos e materiais, existência de diretrizes clínicas e capacitação dos profissionais.

Quanto maior o número de demoras, maior o risco de complicações e morte.

Um estudo realizado nos anos 2011/2012 estimou que 16% das gestantes brasileiras peregrinaram no momento do parto, procurando ao menos dois serviços para conseguir internação para a assistência ao parto.

A cesariana é uma cirurgia importante, que pode salvar a vida da mulher e do bebê, como no caso de Aparecida. Entretanto, ela tem sido realizada de forma excessiva no Brasil, o que traz riscos à saúde das mulheres e bebês, tanto na gestação atual quanto em gestações futuras.

Mulheres que estão tendo o seu primeiro parto e cujo trabalho de parto foi induzido ou que foram submetidas a uma cesariana sem entrar em trabalho de parto, e mulheres que fizeram uma cesariana em gestação anterior, respondem por mais de 55% das cesarianas realizadas no país.

A adequada assistência ao parto, com recursos disponíveis e atendimento oportuno, é essencial para o manejo de complicações e redução da mortalidade materna. Ela pode ser monitorada através dos seguintes indicadores:

  • Proporção de cesarianas
  • Proporção de mulheres segundo grupo de Robson
  • Taxa de cesariana por grupo de Robson
  • Contribuição proporcional dos grupos de Robson para a taxa de cesariana total
  • Deslocamento para assistência ao parto

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O bebê, Carlos José, nasceu vivo, mas prematuro e pequeno, com pouco mais de 2 kg, e ele e a mãe precisaram de cuidados intensivos.

O hospital da cidade não contava com leitos de UTI, e os médicos solicitaram vaga no hospital da capital.

A situação de Aparecida e do bebê piorou enquanto esperavam a vaga.

O parto prematuro, com menos de 37 semanas de gestação, e o baixo peso ao nascer, que é o nascimento de um bebê com menos de 2500g, são os principais fatores de risco para a mortalidade infantil.

Ambos estão relacionados à qualidade da assistência durante a gestação e podem ser reduzidos com uma adequada assistência pré-natal.

As condições de nascimento do recém-nascido refletem a qualidade dos cuidados recebidos pela gestante durante a assistência pré-natal e ao parto. Alguns indicadores que acompanham essas condições são:

  1. Proporção de nascidos vivos prematuros
  2. Proporção de nascidos vivos com baixo peso ao nascer
  3. Proporção de nascidos vivos termo precoce

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Depois de um dia de espera pela vaga na UTI, Aparecida e seu bebê foram transferidos para o hospital da capital.

Lá receberam os cuidados adequados, mas a demora para a transferência aumentou a extensão dos danos e o tempo que os dois tiveram que ficar internados até se recuperarem.

A empresa onde Aparecida trabalhava, de forma irregular, a demitiu. A situação econômica da família se complicou, mas eles imaginam como teria sido se ela não tivesse sobrevivido.

Sua amiga de infância viveu uma gestação muito parecida com a de Aparecida, mas a vaga na UTI não chegou a tempo nem para ela nem para seu bebê.

Uma mulher que quase morreu, mas sobreviveu a uma complicação grave durante a gestação, parto ou puerpério, é um caso de morbidade materna grave. Foi o que aconteceu com Aparecida.

Casos de morbidade materna grave são muito mais frequentes do que os óbitos maternos, mas apresentam os mesmos determinantes.

Por isso, a Organização Mundial de Saúde recomenda o estudo da morbidade materna grave como uma estratégia complementar para a melhoria do cuidado obstétrico e redução da morte materna.

Os óbitos maternos podem ter causas obstétricas diretas ou indiretas. As causas obstétricas diretas são as que podem ser mais facilmente evitadas por melhorias na assistência à gestação, ao parto e ao puerpério.

A morte materna e a morbidade materna grave são os desfechos adversos de curto prazo para a saúde da mulher, resultantes desta cadeia de determinantes apresentados ao longo da história de Aparecida. Elas podem ser acompanhadas pelos seguintes indicadores:

  1. Razão de mortalidade materna
  2. Proporção de óbitos maternos por causas obstétricas diretas
  3. Proporção de óbitos maternos diretos segundo principais causas
  4. Proporção de casos de morbidade materna grave em internações obstétricas

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A prevenção da morte materna e da morbidade materna grave, como foram os casos de Aparecida e de sua melhor amiga, depende do acompanhamento de informações corretas, que permitem a avaliação adequada da situação de saúde e o planejamento e melhoria das ações de saúde.

No Brasil, apesar dos avanços, a investigação de óbitos maternos e de mulheres em idade fértil ainda não alcançou a meta desejada, havendo muita variação entre as diversas regiões do país.

Óbitos maternos podem estar subestimados, se não for declarado que o óbito ocorreu durante a gestação, parto ou puerpério. Além disso, a investigação do óbito permite a melhor compreensão da sua causa e da cadeia de determinantes.

A qualidade dos sistemas de informação pode ser acompanhada através dos seguintes indicadores:

  1. Investigação dos óbitos de mulheres em idade fértil
  2. Investigação dos óbitos declarados como maternos.

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A grande maioria das mortes maternas acontece por causas evitáveis e sua ocorrência representa uma violação dos direitos humanos.

A raridade do óbito materno pode mascarar falhas de assistência que aumentam as chances de um desfecho trágico. Mas, assim como na história de Aparecida, a ausência de mortes maternas não significa que esse evento não possa acontecer.

Os indicadores disponíveis nos sistemas de informação brasileiros têm papel fundamental no monitoramento da vulnerabilidade da mulher brasileira à morte materna, na sua prevenção e na tomada de decisões que promovam a saúde das mulheres.

Acesse o painel com os indicadores aqui e identifique as situações de maior vulnerabilidade em seu município ou estado.